PRIMEIRA-DAMA

Qual é o problema da primeira-dama Janja Lula?

Entenda qual é o principal problema de Janja, primeira-dama e mulher do atual presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva

Sávia Barreto
Colunista do EMOFF

O ano é 1918

O Ministério das Relações Exteriores negou a Maria José de Castro Rebello Mendes o pedido de inscrição para o concurso de diplomata. Sob pressão, o então ministro das Relações Exteriores, Nilo Peçanha, deferiu a inscrição, mas disse antes: “Melhor seria, certamente, para o seu prestígio que continuassem a direção do lar, tais são os desenganos da vida pública, mas não há como recusar sua aspiração, desde que fiquem provadas suas aptidões”. Maria José passou em primeiro lugar e foi a primeira funcionária pública de carreira do Brasil.

Corta para novembro de 2022

Calhou de ser Eliane Cantanhêde, jornalista do Estadão e GloboNews, a verbalizar de maneira sintomática – pois estamos em um dos países mais desiguais e violentos do mundo para as mulheres viverem – o “incômodo” que petistas e nomes próximos do novo centro de poder em torno de Lula não têm coragem de dizer em voz alta a respeito da futura primeira-dama, Rosângela Lula da Silva, a Janja: Janja aparece demais (!), reclamam.

A FALA

“Eu acho que um bom exemplo de primeira-dama foi a Ruth Cardoso que, como a Janja, tinha um brilho próprio, era uma professora universitária […] mas ela não tinha protagonismo, ela não tinha voz nas decisões políticas. Se tinha, era a quatro chaves dentro do quarto do casal”, disse Catanhêde na última sexta-feira durante o programa “Em Pauta”, da Globo News, em referência à antropóloga Ruth Cardoso, esposa do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

TÚNEL DO TEMPO

O saudosismo que Eliane Cantanhêde expressa a respeito dos papéis adequados para primeira-dama representam nada mais do que a expectativa social ainda dominante no país: mulheres sem voz, hierarquicamente abaixo do homem. Se escavarmos um pouco mais, podemos ressuscitar no país o Código Civil de 1916. Lá diz que as mulheres casadas eram consideradas relativamente incapazes e deveriam pedir autorização aos maridos para trabalharem e aceitar herança. É o que muitos gostariam que estivesse em voga até hoje.

DIREITO À PRESENÇA

Estar presente, mesmo quando não se espera sua fala é um modo de quebrar paradigmas e normalizar a legitimidade do feminino em meio a um campo tão masculino, a política. É o que temos visto com Janja. Uma futura primeira-dama que até segue roteiros, mas que também impõe seu próprio script, causa desconforto a quem se habituou ao silêncio comedido e à responsabilização da mulher apenas às funções domésticas e decorativas.
 
Ter poder é ter voz, ser ouvido. E o poder de Janja incomoda porque acontece, muito provavelmente, às custas de homens que diminuem seu acesso e influência à cabeça do presidente eleito. É simples: o protagonismo de Janja, incorporado no arquétipo da mulher governante, é alvo de disputa porque quanto mais poder ela demonstra ter, menos poder outras figuras se ressentem de não ter ao redor de Lula.

NÃO É DE HOJE

No perfil de Janja, escrito pela jornalista Thays Bilenky na revista Piauí em outubro (“Com vocês, a leoa”), há a informação nas entrelinhas, mas clara o suficiente para antever que a personalidade da futura primeira-dama é controversa entre os aliados de Lula – ou seja, o fogo acontece também do lado amigo: “As comparações com Marisa Letícia, com quem Lula foi casado durante 43 anos, não demoraram a aparecer. Os mais próximos dizem que a ex-primeira-dama não se envolvia diretamente nas campanhas e conseguia aterrar Lula. Era capaz de lhe dizer verdades e evitava que se perdesse no próprio sucesso. Janja, ao contrário, faz questão de aparecer na linha de frente e inebria o ex-presidente”.

A reportagem de Bilenky – que também participa do ótimo podcast “Foro de Teresina”- elenca barreiras e saídas criativas ou impositivas de Janja às resistências que têm encontrado no entorno do PT: Janja atribui parte das críticas que recebe ao machismo, e não é dos adversários. É dos ‘companheiros do PT’ mesmo. A essa reclamação, petistas reagem dizendo que a forma como ela se impõe, muitas vezes ocorre à revelia das orientações do partido. Veem nela um desejo de se tornar uma voz influente, que esbarra nas estratégias de campanha. Mesmo entre as feministas, há quem torça o nariz para o papel de Janja na campanha – dela ou qualquer outra mulher de candidato”.

DAQUI PRA FRENTE

O lugar de mulher é no lar. O trabalho fora de casa a masculiniza”, revista Querida, 1955. Ao longo do tempo, a cultura define papéis, proibições, expectativas e recompensas a homens e mulheres. Como se vê pela frase pinçada da revista “Querida” acima, nada é permanente. Que bom.

O modo como estabelecemos relações é mutável. Mudamos, e com essa mudança, não apenas nos transformamos, como impactamos a sociedade ao nosso redor. Ousadia e coragem também são adjetivos que cabem às mulheres. Para 2023, não cabe estigmatizar e limitar nenhuma mulher – e Janja está aqui como exemplo real, mas também simbólico – à caixinhas pré-determinadas e limitantes. Com voz! Fora do quarto! Onde quisermos!

*Sávia Barreto é jornalista, mestra em Comunicação e doutoranda em Políticas Públicas.

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